Sempre que saio à rua para ir a feira ou simplesmente para dar um passeio, é certo me deparar com antigos amigos que trazem na ponta da língua a mesma e velha pergunta: “Aurora, é verdade que você se transformou numa bruxa, como disse seu primo Cosme?”
Quando lembro que tentei ensinar alguma coisa boa àquele farabutto, penso logo em acabar com os seus cabelos, ou fazer aquele nariz crescer sem parar! Mal sabe o que está reservado ao seu topete arrogante.
Certa tarde recebi um recado seu convidando-me para um chá no Banco Médici, ao fim de seu expediente, onde agora aprendia com seu pai seu ofício de banqueiro. A recusa foi imediata, mas a curiosidade fez-me repensar: o que aquele stronzo quererá comigo? Resolvi, então, aceitar.
Há tempos não tinha notícias de meu primo. Nosso último encontro terminou de forma muito desagradável e com um certo rompimento. Cosme não respeitava minhas lições, estava sempre arrumando um jeito de roubar meus pergaminhos, de modificar as receitas, de desconsiderar as medidas e por diversas vezes quase causou explosões em meu laboratório. Por fim, usou de tamanha ingratidão quando lhe pedi uma simples intercessão. Mas quem apanha, nunca esquece!
Vesti-me como uma dama florentina, mas levei comigo os artefatos dos quais não me separo. A fim de não atrair mais olhares do que de costume, não pela pouca beleza, mas pela desconfiança do povo, tomei emprestada dos franciscanos uma charrete e dirigi-me ao centro da cidade, parando meu veículo em frente ao local combinado. Desci e fiquei a espreita em frente a porta do banco, que estava fechada. Não havia movimento algum. Depois de esperar alguns minutos, a porta foi aberta por dentro por um homem que pelas vestimentas se parecia com um guarda. Ele me olhou e disse: “Senhora Médici? Seu primo Cosme a aguarda no andar superior.”
O grande salão de atendimento estava com as luzes acesas, embora, lá fora, ainda houvesse sol. Subi as escadas indicadas pelo tal guarda, e deparei-me com um exuberante escritório. A porta era toda talhada, como a de uma catedral, o piso era amadeirado e podia-se ouvir o som das mais sutis passadas, no luxuoso lustre cabiam centenas de velas e estavam a mais ou menos cinco metros de altura. Na sala haviam três grandes mesas com pomposas cadeiras que formavam um “U”. Cosme estava sentado junto a mesa central e ao perceber minha chegada, levantou-se e dirigiu-se ao meu encontro.
- Aurora! Fico feliz que tenha aceitado meu convite! Congratulações pelo casamento com o Sr. Ricardi. Foi uma bela e inteligente aliança para nossa família! Confesso que fiquei surpreso com tamanha astúcia.
- Cosme, meu primo! Chamou-me aqui para dar-me o presente de casamento que sua ausência esqueceu de levar? Ou para descobrir se posso lhe beneficiar com as riquezas de meu marido?
- Aurora, Aurora, você não mudou em nada. Sempre arredia e sem meias palavras. Mas não se preocupe, não são os Ricardi que me interessam, por hora! Andei pensando nas aulas que tive com você, no nosso último e não tão prazeroso encontro, e no quanto você pode ter evoluído em sua... ciência...
- Continue Cosme, quero saber onde vai deseja chegar com essa conversa! Vá logo ao que lhe interessa.
- Oh, me perdoe, estou sendo muito deselegante... Não aceita um chá?
- Não, obrigada, estou bem assim... não precisa ser hipócrita, já nos conhecemos muito bem... e então o que quer de mim?
- Embora você não queira admitir, sei que seus conhecimentos de alquimia cresceram vigorosamente, como uvas nas parreiras da Toscana. Andei pesquisando, lendo, conversando com viajantes e mercadores e posso crer que você tem algo que muito me interessa.
- Desculpe Cosme, não sou mais digna da herança de meu pai, e mesmo se tivesse um florim sequer , não investiria em negócios seus.
- Minha cara, não se faça de ingênua e nem a mim de estúpido... não estou interessado nos florins de seu velho pai, mas naqueles que você mesma poderá produzir para mim!
3 comentários:
Oi Fabiana,
Excelente texto, gostei muito!!
Estou curioso pra saber qual seria a contra-partida de Cosme. O que será que ele oferecerá em troca dos favores de Aurora...
Atenciosamente,
Hugo Marcelo
P.S. Estamos vivendo o momento áureo de nosso Blog. Nunca na história dessa mesa tivemos tantas contribuições e de vários jogadores... Vou me esforçar para postar alguma coisa do Abdul.
Oi, Fabi,
Que alegria ver um post seu aqui. E ótimo, dá vários ganchos para os anos vindouros. Que a Aurora não caia na lábia desse primo oportunista, que por uns mil réis vai entregá-la de bandeja para os dedaleanos.
Oi mulher mais linda do mundo,
De fato é uma excelente continuidade do prelúdio. Manteve o mesmo clima narrativo de uma aristocrata florentina do século XIV. O jeito da Aurora, intempestivo, vigoroso, é claramente descrito como um diário. E essa escolha da relação com cosmo médici é fundamental para a crônica e para a história de Florença.
Aurora Médici é uma personagem essencial para o desenvolvimento histórico da cabala em Florença. É muito bom ter mais de sua personalidade e histórias em nossa crônica.
Obrigado e um beijo.
Postar um comentário