Devido ao último castigo sofrido pelos nossos personagens, achei que valia a pena parafrasear um ensinamento muito valioso da segunda edição de Mago, sobre as formas de se fazer magia. A metáfora não é mais a da tigela de água, mas a idéia é a mesma. Como diz o mestre da Capela, no conto original:
"Analogias podem ser perigosas, porque o mundo é como um castelo de areia"
Eleonora narra um ensinamento de Ramadeli. Escrevi inspirada pelo artigo do Tim Ingold que estou traduzindo, "Up, Across and Along".
-----
A cada encontro, Ramadeli me entrega algumas palavras, fragmentos de histórias muito diferentes das aventuras da commedia dell’arte. Diferentes também das lições sobre as quais se sussurra em Santa Croce, a respeito de Aristóteles e sua Arte Poética, capaz de nos livrar da maldição de Dante. As histórias de Ramadeli são como sonhos, sem que possamos dizer quando e onde começaram e para onde vão ao terminar, sem que saibamos quando ressurgirão na nossa memória. Como pequenos milagres, reconfortantes como as lágrimas de Maria no vitral de Santa Croce ou excruciantes como as chagas de Nosso Senhor, tépidas e ardentes. Enquanto saíamos do inferno, envolvidos em um turbilhão, quase ensurdecida pelo zumbido das vespas e cega de fuligem e desespero, as palavras de Ramadeli chegaram a mim como uma tarefa e uma advertência.
“Um grupo de jovens vaga pelas montanhas. Seus passos são sua forma de conhecer o mundo para que aprendam qual é a natureza de seu lugar nele.”
“O primeiro jovem sai como quem persegue um destino, com pressa. Ele vai de ponto a ponto, de lugar em lugar, gastando o mínimo de tempo possível no caminho, de preferência tempo algum. Seus destinos são fixados anteriormente pelas rotas que encontra nas encostas e nos vales. Seus destinos interconectados poderiam ser vislumbrados todos de uma vez se fossem desenhados em um mapa com bordas bem definidas. Ele se desloca como um passageiro, indiferente aos arredores do caminho, focado nos lugares onde irá parar. Sua ação é confinada aos lugares em que se detém, seu caminho parece não existir, seus movimentos são para se realocar. Este primeiro jovem alcança seus lugares, mas não deixa rastros ou traz lembranças de seus caminhos.”
“O segundo jovem sai como quem vai em um passeio, levado pelo movimento. Suas perambulações deixam pegadas, rastros e trilhas, ao longo das quais ele vive sua vida. Tomadas em conjunto, suas jornadas parecem formar uma rede emaranhada de junções, encruzilhadas, idas e vindas. Caminhando ele habita a terra, participando continuamente de seus devires, tecendo a vida e dando-lhe textura. Seus passos podem ser retraçados em causos e contos, repleto de gestos. Este segundo jovem sempre está em algum lugar, e a caminho de outro lugar”.
“O terceiro jovem sai como quem quer ocupar o mundo. As trilhas de passeio e rotas de transporte são para ele uma superfície plana sobre as quais ele pode traçar suas linhas de ocupação, diretas, indiferentes às cercanias, cortando caminho. Seus gestos e movimentos não participam dos caminhos do mundo, mas querem impor a ele novos desenhos sem preocupar-se com a beleza dos antigos. Ao final ele acredita que pode atravessar por dentro das montanhas e cruzar abismos sem enfrentar suas encostas. As marcas que deixa em seu caminho precisam soprepôr-se às outras para que não sofram interferências, e assim seu caminho jamais pode ser retraçado ou compartilhado, impõe-se apenas ao presente. Este terceiro jovem ao ocupar lugares e caminhos sente que lhe escapam, até que um dia só resta o ermo”.
Levanto meu rosto de seu ombro reconfortante, ponho meus cabelos atrás da orelha. Não entendo bem o que o velho Sahajiya quer dizer.
“Quem são esses jovens peregrinos, Ramadeli? Onde afinal eles estão e qual é o seu lugar?”
“A magia é como um jovem andarilho, tecendo em sua jornada os fios da Tellurian. Cada um desses jovens é um gesto, um ato mágiko trançando a Trama.
“O primeiro jovem pode ser um gesto da magia estática. Aproveita caminhos já percorridos, atinge seus objetivos sem fazer de fato parte do processo de sua criação. Mesmo sem poder fazer novos arranjos, o primeiro jovem é capaz de acumular muito conhecimento e poder, e desfazer nós importantes.
“O segundo jovem, que leva seus fios da Trama para passear, pode ser a quintessência da magia dinâmica. Criando e compartilhando seus caminhos em harmonia com seus horizontes, ele enriquece a Trama, desperta-lhe novas cores e revigora fios cansados. Sem começo ou fim, diariamente, aproveitando-se do que encontra e entregando um pouco de si”.
“O terceiro jovem pode ser o colonizador, tocado pela hybris. Quer impôr sua imagem sobre aquilo que encontra, vivendo o medo constante de se tornar aquilo que está aniquilando. Pode ser a magia vulgar, que nada respeita, que lança teias na Trama como se fossem novos Padrões, mas emporcalha e apodrece os fios, cobrindo a Tellurian com cores que não perduram. Nada pode perdurar violentamente, este caminho conduz à revolução ou à aniquilação.”
Antes de deixarmos completamente o inferno, vejo mais uma vez os indecisos correndo. Vejo ali todos os magi mortos, vivos e não nascidos, presos em caminhos vãos e dolorosos. Os rostos desses magi se fundem aos rostos de meus companheiros da Santa Croce, espantados diante do portal que se abrem. Parecem feridos, cansados. Precisam de um andarilho experimentado e cheios de esperança. A imagem que me surge é a de um cavaleiro andante, Pietro de lança em punho e braveza no coração. Escolho me apresentar assim para percorrermos juntos nosso tortuoso caminho.
2 comentários:
Grande Ana,
Belo texto. Gostei!!!
O inferno foi uma fonte de inspiração interessante...
Aos poucos vou descobrindo que sem tragédia não existiria literatura de qualidade... Heheheeh
Hugo Marcelo
clap, clap, clap!
=)
Postar um comentário