Deus foi Quem fez a terra como berço, o céu como teto, modelou e aperfeiçoou as vossas configurações, e vos agraciou com todo o bem. Tal é Deus, vosso Senhor. Bendito seja Deus, Senhor do Universo!
Abdul depois de gritar, bater na grade, insistir pela presença de seu carcereiro Fahir; desiste e exausto se senta no chão de sua pequena cela. Neste momento de forma bastante aguda percebe sua insignificância e impotência. Por alguns minutos se desespera e chora, mas logo se recompõem e se coloca em oração implorando a Allah (swt [1]) pela saúde de Hasan e que sua vontade suprema seja feita. Após aproximadamente 40 min ele ouve passos pelas escadas de madeira que vão ficando mais altos, mais próximos e então dois homens se colocam defronte ele.
Um mais velho, barba branca, baixo, com traços delicados, mãos finas como daqueles que nunca tiveram trabalho braçal. Tinha um leve ar de superioridade, mas com um quase sorriso no rosto e bem simpático. O outro era alto, musculoso, um olhar duro, frio, quase cruel. Possuía várias tatuagens sobre imensas cicatrizes. Com certeza era um guerreiro, provavelmente sanguinário, do tipo que não precisava se esforçar para despertar pavor em seus inimigos, mas curiosamente usava um avental de ferreiro e tinha, inclusive, uma marreta na cintura. Trazia consigo um baú de madeira.
-Assalam-u-Alaikum Abdul. Meu nome é...
-Contramestre Tevfik. – Interrompe Abdul. – Eu ouvi seu nome no convés.
-Suponho que já tenha sido apresentado ao Fahir.
-Vá para o fundo da cela e vire-se de costas. – Ordenou Fahir.
-Como?
-Vá para o fundo da cela e vire-se para a parede, agora!
Contramestre Tevfik |
Abdul diligentemente obedece e ouve o barulho da cela se abrindo e depois sendo novamente trancada, seguido de passos de alguém que se afastava...
-Pode se virar, Abdul.
Abdul se vira e só vê Tevfik e dentro da cela, o baú.
-O que é isso?
-Abra o baú e descubra.
Abdul olha desconfiado para Tevfik que o olha com compaixão. Vagarosamente abre o baú e descobre que está repleto de frutas, pães, mel, sucos e um grande recipiente transparente em formato de uma cabaça.
-O que é isso?
-Seu café-da-manhã.
-O que você quer em troca?
-Que você coma.
Abdul pega a garrafa de água e mostra para Tevfik.
-O que é isso?
-Chama-se “vidro”.
Abdul avidamente abre o recipiente e bebe da água mais gelada e saborosa que já provou em sua vida.
-De onde veio esta água? – Perguntou receioso.
-É de Jerusalém. Criamos uma máquina que purifica e gela a água.
-Impressionante.
-Abdul, por favor, coma devagar, você pode acabar passando mal...
-O que é isso? – Perguntou com a boca cheia.
-Geléia de morango. Pegue esta espátula e passe no pão. É gostoso... E não deixe de experimentar o suco de tomate.
Café-da-manhã de Abdul |
Tevfik fica observando Abdul se fartar e depois de alguns minutos sutilmente inicia seu interrogatório.
-Qual seu nome completo Abdul?
-Meu nome é Abdul Haseeb Muhammad Abn Abdulaziz.
-És beduíno?
-Sim, sou.
-O que você veio fazer em Mecca?
-A Hajj [2].
-A Hajj?
-Sim, e o que mais poderia ser... Por que atiraram em meu tio?
-Seu tio?
-Sim, meu tio Hasan.
-Ahh... Ele era seu tio?!
-Sim. Por que vocês nos atacaram?
-Você não sabe?
-Não.
-Já ouviu falar da “Ordem da Razão”?
-Não.
-E sobre “magos”?
-Claro. Desde criança ouço muitas histórias sobre magos, djinn, dançarinas de dança do ventre, sultões…
-Sabia que teu tio Hasan é um mago?
Abdul permanece em silêncio, como que pensando na pergunta.
-O que você foi fazer na Kaaba?
-A tawaf [3].
Fahir (carcereiro de Abdul) |
-Abdul, vou repetir a pergunta. O que você e seu tio foram fazer dentro da Kaaba?
-Hum??
-Caro Abdul, assim você ofende a minha inteligência. Acha que não vimos você e seu tio voando para dentro da Kaaba?
Abdul olha para Tevfik com espanto.
-Do que você está falando?
-Da reunião que tiveram dentro da Kaaba com vampiros.
Abdul olha para Tevfik com piedade.
-Senhor Tevfik, às vezes o deserto "prega peças" nas pessoas. Nós beduínos chamamos isso de miragem.
Tevfik se irrita e saca sua espada e exclama furioso:
-Não brinque comigo moleque!
-O senhor me insulta com estas acusações sem sentido. Com que direito me acusas sem provas?
Tevfik olha bem no fundo dos olhos de Abdul... Depois de alguns segundos se acalma e guarda a espada na bainha.
-Ou és um grande mentiroso, ou estás falando a verdade.
-Brilhante conclusão, senhor Tevfik... O que digo é a verdade.
-Veremos. Em dois dias estaremos em Jerusalém. Jabir ibn Hayyan tem meios de extrair a verdade de você.
-Quem é Jabir?
Tevfik olha muito seriamente para Abdul e vagarosamente se afasta. Abdul percebendo que Tevfik está indo embora se precipita para junto da grade e grita:
-E meu tio Hasan? Como ele está?
Uma voz distante responde:
-Não encontramos o corpo de seu tio Hasan. Se fosse você rapaz não me preocuparia com ele, algo me diz que ele está bem... Infelizmente.
Abdul sorri aliviado, está tão feliz que dá um salto no ar e desastrosamente chuta sua garrafa d’água que se choca contra a grade e se espatifa em incontáveis cacos.
Abdul com curiosidade examina um dos cacos e acidentalmente se corta, um ferimento superficial, nada grave, mas percebe como aquele material é cortante. Ele se senta, pega uma fatia de pão e fica “brincando” de espetar o pão com o caco. Neste momento seus olhos brilham... Sua atenção se volta para o baú. Ele então identifica o recipiente com suco de tomate e começa a arquitetar um plano de fuga daquele "barco voador", antes que começasse a perder o juízo, como Tevfik.
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[1] Subhanahu wa ta'ala: "glorioso e exaltado é Ele".
[2] Peregrinação a Meca, obrigatório pelo menos uma vez na vida para todos que gozem de boa saúde e meios financeiros para tal.
[3] Ritual no qual o peregrino faz sete circumambulações em torno da Kaaba.
4 comentários:
Hugão, esse teu post talvez seja um dos melhores que eu já li.
Dinâmico, na medida certa, inteligente, bem descrito.
Creio que você trabalha muito bem com diálogos. As cenas, desde a vida como ela era, de diálogo são estimulantes e engraçadas.
Eu quase estive junto na cela vendo o café da manhã e a perplexidade do Abdul com o vidro e as criações islâmicas dedaleanas.
Vale os dois pontos!!!
Valeu Diego,
Estou trabalhando no plano de fuga de Abdul, acho que será interessante...
Hugo Marcelo
Eu concordo com o Diego!
Esse aqui foi pra mim o melhor post!
Cheio de trama e ricas descrições!
O Dialogo é o teu forte. Faz logo uma novela na Globo!
hehehehehehehe
Beijocas
Oi Camila,
Realmente os diálogos das novelas estão cada vez piores...
Até eu faço melhor!!!
Hugo Marcelo
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