21 de janeiro de 2011

Capítulo I - A dor transcendente

      
- Fala, desgraçado! Quanto tempo ainda queres suportar?

Não recordo o número de vezes que o glutão suado havia perguntado aquilo, mas ele mesmo já estava cansado de me torturar. Parecia não ter mais ânimo para continuar. Nem eu.
No começo me forcei. Deveria controlar a dor. Aceitá-la. Gozá-la. E, com o tempo percebi que, após tanta mutilação, meu corpo havia adormecido. A dor se espalhara por todos os lados me aprisionando em uma espécie de transe. Assim, continuei por dias seguidos, recebendo múltiplos e sucessivos ferimentos, tanto físicos quanto psicológicos.
O lugar fedia. Ratos e baratas me cercavam e me acompanhavam nos escassos momentos de cessação da dor. Eu os ajudava lhes dando um pouco do meu sangue podre e eles me ajudavam servindo como alimento. Com sua ajuda pude saciar minha fome por muitos dias.
Sofrimento após sofrimento, mas permaneci firme. Não aceitaria que meus companheiros passassem por tudo aquilo. Não com a minha ajuda. Não pelos motivos que nos moveram. Roubamos livros. Sim. E Roubamos de gente rica e poderosa. Sabíamos o que estávamos fazendo e quais livros eles não desejavam que fossem lidos. Fizemos tudo conforme nossas próprias decisões e continuaríamos a fazer.
Montávamos nossas barracas em feiras espalhadas por diversas regiões, pois permanecíamos viajando o tempo todo, buscando nos afastar dos lugares de onde roubávamos. Em meio a isso, líamos e compartilhávamos os conhecimentos adquiridos nos livros com quem se interessasse. E nunca faltavam pessoas que, sem saber ler ou escrever, se deliciassem ouvindo histórias antigas e distantes. Nossa força motriz era essa: revelar tudo aquilo que estava escondido.
Ao mesmo tempo em que compartilhávamos conhecimento, o acumulávamos. Conseguimos pesquisar filosofias de diversas partes do mundo conhecido e minha espiritualidade se fortalecia mais e mais. Sentíamos um êxtase divino lendo e estudando, mas nada daquilo parecia nos satisfazer mais do que quando compartilhávamos. Uma construção dialética do conhecimento se consubstanciava quando, crianças, adultos e velhos, sentavam juntos conosco para conversar. Líamos livros para eles e escutávamos suas experiências vividas e suas conclusões. Nunca poderei trair quem me entregou tanta riqueza.

- Vamos, seu imundo! Termine logo com esse sofrimento e nos diga os nomes daqueles que te ajudaram.

Com o corpo dormente de tanta dor, minha mente se acostumou. Calculei ser melhor que apenas um de nós sofresse. Apenas a dor me separava da morte e era essa a certeza que me estimulava: a morte. Com ela transcenderia espiritualmente. Mas a traição nunca seria perdoada. Deveria continuar acreditando na firmeza da virtude, pois pessoas confiaram em mim e se elevaram a partir das minhas decisões. Do que valeria tudo o que fiz se, por conta de um egoísmo carnal, traísse aqueles que confiaram em mim?

(Mas eu também confiei em pessoas. E uma delas me traiu. Isso é fato).

No fim de minhas forças, meus olhos desejaram descansar. Sabia que aquilo me aproximava da Elevação e não resisti. Aceitei e me entreguei à morte. Sorri uma última vez e dei o grito caridoso do condenado.
Acredito que aquele teria sido meu último instante de vida, mas inexplicavelmente, um ódio, escondido bem no fundo de minh’alma despertou. Alguém deveria pagar pelo que estava passando. Ou Parmênides, ou aquele glutão nojento.
Não queria aquele sentimento me acompanhando. Não no meu caminho para a eternidade. E meu corpo foi teimoso. Obstinado pela vida, ele se firmou nesse mundo. Mas não da mesma maneira que era antes.
As paredes da sala de tortura já não existiam mais e chamas enchiam o horizonte. Descobri que não estava mais preso e o glutão estava comendo seus próprios membros. Já não se importava mais comigo. Decidi caminhar. Sair de onde estava. O céu escuro não facilitava a minha visão. Mas, não muito longe dali, alguém estava de pé.
Era Hades.
      

7 comentários:

Camila Numa disse...

AEEEEEEEEEEEEEE!
AGORA VOU LER!
Tinha que ser a primeira a escrever algo!
=P

Camila Numa disse...

Mas é mt orgulho, fala sério!?!?!?!
(Tenho que babar, desculpem-me).

Amor,
quero mais!

=)

dklautau disse...

Mestre Filipe.

O impacto da narrativa, do começo ao fim, foi a marca dura do prelúdio.

A composição das cenas entre a crueldade da tortura, as memórias de um justo, e o lampejo espiritual da morte fizeram a dinâmica do texto fluir como um rio que não se banha duas vezes.

O Fogo, elemento de Heráclito, esteve presente da primeira à última letra. A virtude e o estudo, a dor e o espírito, a misteriosa gnose grega, em sua mais límpida manifestação, contrastou com visceral verve literária da cena descrita.

Não esperava menos de Heráclito. Saúdo o prelúdio, e rogo que os demais venham em breve.

Abs,

Στην ειρήνη του Θεού

dklautau disse...

E claro, a descrição do despertar foi f*da pra car@lho!

Hugo Marcelo disse...

#Preludio

Grande Filipe,

Gostei muito de seu texto, de como vc trabalhou a categoria "TRAGÉDIA".

Confesso que fiquei um pouco confuso porque um "justo" que morre sob tortura vai parar no inferno e encontra Hades, mas é um início digno de um Chakravanti da mais alta estatura!

Hugo Marcelo

Ana Fiori disse...

Arrepiante, sr. Laredo.

Um Chakravanti despertado sob tortura, diante de Hades. Caminhava você no "espaço da morte", como diria Michael Taussig. E este espaço da morte é o que traz revelação

Hugo Marcelo disse...

Cadê a continuação?

Hehehehe

Hugo Marcelo