15 de dezembro de 2010

Cap. 06 - Noite na Kaaba (Parte II)

                                    
Uma voz me disse à noite, em segredo:
                                 
Não existe tal voz que sussurra em segredo na noite!
         
                                     Haidar Ansari
  
Enfim Mecca...
            As cores, os aromas, as pessoas, tudo resplandecia a grandeza de Allah (swt).


-Abdul, temos que nos apressar, estamos sendo esperados na pousada Oasis, não podemos ir a Kaaba assim sujos e sem uma vestimenta adequada... Os camelos rirão de nós.  –  Sorriu-se.
-Claro tio Hasan, não pretendemos ser motivo de riso para os camelos.
Chegando à pousada, um atendente bem humorado os acompanha aos correspondentes aposentos e após um banho, Hasan presenteiou Abdul com uma túnica e um taqiyah [1] impecavelmente brancos.
-Obrigado tio.
-Vamos Abdul, temos menos de uma hora para estarmos na Al Masjid Al-Haram [2].
-Por que estás tão apressado tio?
Hasan sorriu enigmaticamente e respondeu apenas com “temos que estar na Kaaba ao pôr-do-sol”.
-Por que tio Hasan?
Hasan não respondeu.
-És muito misterioso tio Hasan... O que escondes?
Hasan abre o seu melhor sorriso, um sorriso puro como de uma criança que recebe um doce da avó, mas Abdul se aborrece com Hasan.
-Por que não me diz a verdade? Por que não confias em mim?
Após alguns segundos de silêncio, Hasan olha para Abdul e rebate:
-E o que é a verdade Abdul?
-É o que me escondes.
-Abdul, achas mesmo que podes suportar a verdade?
Abdul ficou em silêncio, olhando Hasan como se não tivesse entendido sua afirmação. Hasan então parou de sorrir, olhou muito seriamente no fundo dos olhos de Abdul e disse:
-Pois muito bem, quando chegarmos à Kaaba, a verdade se revelará e que Allah (swt) te ajude a suportar este fardo.
Abdul ficou estático, parecia que seu coração parou de bater por alguns segundos, sua garganta secou, mas então se recompôs, não podia parecer fraco aos olhos de seu tio.
-Pois que assim seja.  –  Afirmou sem muita segurança.
Hasan fez um movimento afirmativamente com a cabeça e diz secamente:
-Vamos.
Após aproximadamente 40 min de caminhada, por entre uma multidão de peregrinos, Hasan e Abdul se aproximam de Al Masjid Al-Haram.
-Nossa quanta gente, nunca pensei que existissem tantos muçulmanos no mundo.  –  Afirmou Abdul espantado.
-O sol já está se pondo, devemos ter no máximo 15min de luz solar.  Temos que estar na Kaaba ao anoitecer.
Abdul olha a fila quilométrica e aparentando desânimo, brinca:
-Acho que o senhor só me revelará a verdade amanhã...
Hasan dá um sorriso sínico e carinhosamente coloca sua mão esquerda nas costas de Abdul e o conduz para fora da fila em direção à sagrada mesquita, para detrás de uma de suas colunas, um local discreto.  Abdul se assusta com esta atitude de Hasan.
-Tio Hasan, estás zangado comigo? Peço perdão por minha petulância.
Hasan olha para Abdul e responde:
-Não estou zangado, apenas não posso permitir que as pessoas nos vejam.
-Que as pessoas nos ve...
Antes que Abdul terminasse a frase, Hasan segurou vigorosamente no braço de Abdul e disse algumas palavras incompreensíveis e seus olhos começaram a brilhar. Antes que Abdul esboçasse qualquer reação, Hasan criou um portal e ambos transpassaram a parede da mesquita e foram como que voando a aproximadamente 10m de altura em direção à Kaaba, em altíssima velocidade.  Abdul estava maravilhado, nunca em sua vida pensou que saberia o que é voar como os pássaros e estavam mais rápido do que o mergulho de uma águia ao avistar sua presa. Mas a excitação de Abdul se transformou em desespero quando se aproximavam da Kaaba, ou melhor, de suas paredes de granito maciço e Hasan olhava fixamente para Kaaba e não parecia que tinha intenção de diminuir a velocidade, a colisão era iminente.
Abdul se desespera, agarra Hasan e grita: Tio Hasan, tio Hasan, Tio Hasan!  AAHH!!!!
O jovem beduíno fecha os olhos e protege seu crânio com seus braços do impacto iminente. Passado alguns segundos, sente que não estão mais voando, estão como que parados, flutuando no ar. Abdul abre os olhos e não enxerga nada. Estão na mais completa escuridão.
-Tio Hasan?  –  Indaga Abdul temeroso.
-Sim sobrinho.  –  Respondeu enquanto iniciavam um suave movimento de descida.
-Estamos mortos?
Hasan ri alto, faz um movimento com o braço e o ambiente torna-se iluminado.
-Espero que não Abdul. Tenho uma reunião importante ao pôr-do-sol. Seria muita indelicadeza de minha parte morrer agora e deixar meus convidados esperando.  –  Suavemente ambos aterrissam.
Abdul explora o ambiente. Era uma sala, como que um prisma quadrangular de pouco mais de 10x8x14m.  Duas vigas simetricamente distribuídas e, próximo ao teto, inúmeros enfeites que brilhavam como tochas prateadas. À sua esquerda, vê uma única entrada, selada por portas douradas.
-Tio, onde estamos?
-No interior da Kaaba.
-Como isso é possível?  Tio Hasan, és um MAGO!?
-Sim.  –  Afirmou Hasan com uma tranqüilidade inquietante.
Abdul está sem palavras, como se estivesse tentando processar os fatos ocorridos, após um minuto exclama:
-Nunca imaginei ter a honra de conhecer a Kaaba por dentro.  –  Uma lágrima escorreu dos olhos de Abdul.
-Eu também não sobrinho.  –  Hasan também estava emocionado.
Hasan segura seu medalhão em forma de mandala que carrega em torno do pescoço, fala algumas frases do Corão e seu amuleto brilha como o sol por alguns segundos.
-O que foi isso tio?
-Uma magia para proteção.  Não poderemos ser magicamente detectados ou espionados e ninguém entra ou sai deste recinto sem minha permissão.
-Nossa!
-Minha ilustre convidada chegou.
Uma imagem semelhante ao medalhão de Hasan, mas com aproximadamente 2m de altura, apareceu subitamente desenhada na parede e começou a brilhar e uma pessoa apareceu como se viesse através desta imagem. Hasan como que por reflexo ajeita sua túnica e seu taqiyah, abre um imenso sorriso, mas é um sorriso diferente, acho que nunca vi Hasan tão feliz.
-Assalam-u-Alaikum senhorita Zaynab. Seja muito bem vinda.
Era uma mulher alta, esbelta e jovem.  Seu rosto possuía contornos delicados, vestia um vestido simples, mas com um belo hijab de seda. Ela sorriu para Hasan, também parecia estar muito feliz em vê-lo.
-Waalaikum salaam senhor Hasan.
-Os anos lhe foram gentis.
-Você também não está mal. Branco combina com seus olhos.  –  Sorriu alegremente para Hasan.
-Os outros ainda não chegaram?
-Não.  Deixe-me apresentá-la ao meu sobrinho...
-Assalam-u-Alaikum Abdul.  –  Antecipou-se Zaynab.
-Waalaikum salaam senhora.  Como sabes meu nome?
-Digamos que seu tio me contou.  Possuímos uma rede de comunicação mental, chamamos de Naffas Allah.
-Nossa!  –  Exclamou Abdul.
-Caro Hasan, é assim que recebes seus convidados?
-Hum?  –  Disse Hasan.
Zaynab faz um movimento com os braços e surge um tapete persa vermelho, de aproximadamente 5 x 4m e uma dúzia de almofadas, tendo ao lado uma pequena mesa com um bule e seis xícaras. Hasan arregala os olhos e sorri.
-O que seria de mim sem você Zaynab. Desculpe-me os maus modos.
Zaynab retribui o sorriso.
-Um toque feminino é o que mais sinto falta nos Batini. Aceita uma xícara de chá Abdul?
-Sim, obrigado.
-Hasan?
-Obrigado senhorita.
-Hasan, pode me chamar de “você”.  –  Falou com voz suave enquanto nos servia.
No outro lado da Kaaba, ouve-se um som agudo, seguido de uma oração em latim e aparece um homem magro, envelhecido, alto, com uma barba branca, com um cajado que parece mais um tronco de árvore ainda com lascas da casca, com um imenso crucifixo feito de galhos amarrado no pescoço por uma faixa de couro cru bem rústico, com uma túnica branca e um manto amarrotado de lã.
-Assalam-u-Alaikum frei Francisco.
-Boa noite Hasan. Boa noite Zaynab e você deve ser Abdul, como vai?  –  Possuía um sorriso acolhedor e aparentava ser muito amável.
-Waalaikum salaam.  –  Respondeu Abdul.
-Aceitaria uma xícara de chá frei Francisco?
-Teria uma taça de vinho ou uma caneca de cerveja?
-Não meu bom frei. Apenas chá e água.  –  Respondeu Zaynab por entre sorrisos.
-Nós islâmicos não podemos consumir bebidas alcoólicas frei Francisco.  –  Afirmou Abdul.
-Às vezes pequenos vícios podem nos proteger de grandes pecados, oh oh oh!  –  Disse enquanto se sentava e pegava uma xícara.
-Obrigado Zaynab.
-De nada frei.
Um estranho silêncio seguiu-se.  Abdul não percebia o silencioso debate que acontecia:
     
Frei Francisco
Francisco 
            De quem foi a idéia de reunirmos aqui, no interior da Kaaba?
Hasan
            Foi minha, meu bom frei.
Francisco
            Por que?
Hasan
            Existem dois locais onde um Batini pode se ocultar facilmente: em um local isolado e inacessível, ou no meio da multidão.  Este local é as duas coisas. Além do mais, existe algum local mais seguro para uma reunião tão secreta?
Zaynab
            A propósito, do que se trata esta reunião?
Hasan
            Não faço idéia.  Jafar al-Baquir me avisou ontem a noite desta reunião e me pediu para escolher o local.
Francisco
            Por que não nos reunimos no monte Qaf?
Zaynab
            Fiz essa mesma pergunta para Jafar.  Ele me disse apenas que seria “educado” de nossa parte escolher um local mais neutro.
Francisco
            Não considero a Kaaba como "um lugar neutro".
Hasan
                        Jafar gostou da minha sugestão.
Zaynab
                        É bastante… Original. 
                        Hasan…  Sempre imprevisível.
Francisco
                        Acha mesmo este local seguro com aquela multidão lá fora.
Hasan 
            As paredes são de granito, 90cm de espessura.  A única entrada está lacrada por aquelas portas de 300kg em ouro.
Francisco
                        Quem mais virá à reunião?
Hasan
                        E por que tanto mistério?
Zaynab
                        Deve ser referente às manobras da "Ordem da Razão" em Jerusalém.
Francisco
                        Se fosse esse o assunto, porque eu fui convocado para a reunião?
      
Neste momento Hasan silencia, fica como que estático.  Zaynab se preocupa com a mudança do semblante de Hasan.
-Hasan, o que aconteceu?
Hasan não responde, apenas lentamente volta-se para o canto oposto da Kaaba. Seu olhar se torna severo e com voz dura afirma:
-Jafar al-Baquir está chegando... Ele e seus convidados estão chegando...
Francisco não acredita no que está vendo:
-Meu Deus do céu! Virgem santíssima protetora dos magos, protegei-nos.  –  Repetia frei Francisco enquanto se benzia.

Abdul, sem perceber a gravidade da situação, permaneceu sentado, calmamente degustando seu chá, maravilhado com a simplicidade e, da mesma forma, com a grandiosidade do interior da Kaaba. Seu olhar vago, provavelmente imaginando Adão, Eva, Abrão, Agar, Ishmael e tantos outros que estiveram ali e principalmente como seria al-Baytu l-Maʿmur, a casa do paraíso. 
   
É muito difícil pra alguém destinada às estrelas, se preocupar com a poeira dos sapatos...


___________________________________
[1] Chapéu tradicional entre os povos árabes, principalmente islâmicos.
[2] Mesquita sagrada construída ao redor da Kaaba.

OBS: Clique aqui e conheça um pouco da história da Kaaba e dos mitos que a circundam. Além disso, poderá fazer uma visita virtual ao seu interior.


Referência bibliográfica:

Wikipédia.

4 comentários:

dklautau disse...

Dr. Hugo.
Esplêndido.
De fato as aventuras do jovem Abdul estão se tornando bem complexas e surpreendentes.
Fico curioso em saber onde Abdul está nos levando e qual será o desfecho de sua formação.
Os diálogos enriqueceram o prelúdio, assim como as descrições da magia de Hasan e a Kaaba.
Do jeito que a coisa caminha, em breve teremos que publicar essa estória...
Obrigado pelo tempo dedicado, a preocupação a uma narrativa que compartilhamos!

Hugo Marcelo disse...

Grande Diego,

Obrigado por seu gentil comentário, fico feliz que tenha gostado.

Agora só falta a "Noite na Kaaba III - O desafio final".

Um grande abraço,

Hugo Marcelo

Fabi Dias disse...

Adorei o " Virgem Santíssíma protetora dos magos"... Acho que a Madre Tereza deve ser Sua devota!!!

Hugo Marcelo disse...

Oi Fabiana,

A minha inspiração foi Udia: "Maria protetora do GEN pecador. Rogai por nós!".