Uma mandala prateada semelhante ao medalhão de Hasan apareceu como que esculpida em alto relevo em uma das paredes da Kaaba, no lado oposto onde estavam Abdul e os magos. Esta figura geométrica começou a girar, girar, girar em um movimento acelerado até que só era possível ver um círculo que emitia uma luz branca, de forte intensidade, que se transformou num círculo escuro, semelhante a entrada de uma caverna e então ouviu-se passos. Por aquele “túnel”, apareceu um homem bem envelhecido, baixa estatura, obeso, barba completamente branca mas muito bem feita, com um tarbush [1] vermelho e turbante. Ele adentrou o recinto, parou bem diante do portal, olhou muito seriamente para os presentes, fitou Abdul como um antiquário a avaliar um valioso jarro de porcelana chinesa, fez um movimento afirmativo com a cabeça, sorriu e exclamou: “Assalam-u-Alaikum nobres amigos”.
Jafar, um Imam Batini |
Antes que tivesse qualquer resposta, virou-se e lentamente, deu quatro passos para a esquerda apoiado em seu cajado, desobstruindo a saída do portal como se desse passagem para alguém. Neste momento, por aquele portal, aparecem dois homens. O primeiro de estatura mediana, bem envelhecido, longa barba lisa e grisalha, vestindo um turbante branco, com um manto muito gasto. Tinha o aspecto de cansado, como se carregasse o peso da eternidade nas costas. Olhar duro, insensível, quase cruel; sua tez era muito bronzeada, quase da cor do ébano. Rugas muito evidentes. Suas unhas chamaram a atenção de Abdul, eram alongadas, enegrecidas e imundas, próprio daqueles que moram no deserto e sofrem com a escassez de água limpa.
O segundo era jovem, aparentando ter entre 18-23 anos, muito alto, quase 2m de altura, porte físico avantajado, embora também fosse moreno escuro, a pele de seu rosto era lisa, brilhante e bem cuidada. Vestia ricas vestes de seda e um manto de fino linho, alguns anéis de ouro e um colar que ostentava um imenso rubi vermelho vivo que refletia a luz ambiente de forma magnífica. Tinha um ar de superioridade, como de “filho de sultão”, porém melancólico. Tinha uma postura defensiva, bastante atento aos movimentos dos magos, excessivamente cauteloso, sua mão esquerda sempre próxima de uma pequena cimitarra que carregava na cintura, o que alarmou Hasan.
-Fique atrás de mim Zaynab. – Afirmou Hasan dando um passo a frente.
-Sei me defender muito bem Hasan. Preocupe-se com o seu sobrinho. – Afirmou Zaynab aparentando irritação.
Frei Francisco estava estático, apreensivo. Mas não aparentava medo, pelo contrário, tinha uma certa agressividade em seu olhar, como de uma fêmea a proteger sua prole. Segurava seu crucifixo e o esfregava contra o peito repetidamente.
-Onde estamos? – Perguntou o ancião que observava o ambiente aparentando estar desorientado.
-No interior da Kaaba. – Respondeu Jafar.
-Oh! – O jovem aparentou surpresa.
Zaynab se adianta:
-Waalaikum salaam... – Jafar percebe a ansiedade dos magos e interrompe Zaynab.
-Espero que nossos convidados apreciem a hospitalidade dos Batini.
Frei Francisco indignado exclama:
-Jafar, do que você está falando? São seres da noite, amaldiçoados, são...
-Sim, velho amigo, sua percepção está correta, são vampiros, mas não são vampiros comuns. Este é um dos motivos dessa reunião, para firmarmos uma aliança na luta contra o mal.
Hasan arregala os olhos, parece que não está acreditando no que está ouvindo. Frei Francisco está pálido e começa a soar frio. Zaynab se aproxima deste, segura seu braço e educadamente o convida a se sentar e tenta acalmá-lo. Jafar percebe a confusão que criou, parece desconfortável e tenta contornar a situação.
-Caros amigos, os vampiros se diferenciam entre si como os seres humanos ou como os animais. Por acaso podemos julgar a delicadeza de um colibri, pela elegância de uma ave de rapina? Ou podemos inferir a destreza de uma águia pelo andar de um ganso. Estes são filhos de Haqim, são assamitas, mas, ainda, se tratam de um grupo muito especial de assamitas. Estes não pertencem mais ao monte Alamut. Ouviram a mensagem do Profeta (saw [2]) e entenderam que não é vontade de Allah (swt [3]) tirar a vida de inocentes e buscam em Al Basit [4], força para resistir à “Sede”.
-Por que não nos contou antes, Jafar?
-Porque, Hasan, não era seguro.
Um grande alívio se fez presente na Kaaba, sendo que a desconfiança ainda reinava entre os magos. Frei Francisco já parecia estar mais calmo, embora inconformado. Zaynab suspira aliviada.
-Pois muito bem Jafar, como bom cicerone, por favor, nos apresente seus convidados. – Prosseguiu Zaynab.
Jafar sorri amigavelmente.
-Mas que indelicadeza de minha parte. Este é Al-Arqam. – Com uma reverência indicava o mais velho.
-E este é o jovem Asadullah ibn Talib.
- Assalam-u-Alaikum. – Disse a meia-voz enquanto olhava respeitosamente para os magos e fazia uma leve reverência.
Neste momento frei Francisco solta o crucifixo e este fica bem visível em seu peito. Asadullah então vê o símbolo cristão de Francisco e se assusta.
-Infiel!! – Exclama enquanto saca sua cimitarra.
Frei Francisco sentindo-se ameaçado pelo jovem impetuoso leva sua mão ao crucifixo e o esfrega contra o corpo, fala algumas frases em latim e quase instantaneamente o vampiro é atirado contra a parede. Hasan ergue seu braço direito e a cimitarra simplesmente alça vôo até alcançar sua mão. Jafar energicamente exclama “Já chega!” e bate seu cajado no chão que cria uma onda de choque que estremece o chão e as paredes, desequilibrando todos os presentes que se apóiam nas paredes para não caírem, exceto Abdul que se encontrava sentado, deixando seu chá derramar.
-Um infiel dentro da Kaaba, blasfêmia! – Exclama o jovem assamita.
-Não Asadullah, frei Francisco é discípulo de Seydna Issa (saw) [5] e também é bem-vindo aqui. Allah (swt) em sua infinita generosidade acolhe a todos: islâmicos, judeus, cristãos e até mesmo vampiros. – Falava olhando diretamente para seus olhos.
-Mas os cristãos matam islâmicos, incluindo mulheres e crianças.
-E islâmicos matam cristãos, o que é completamente contrário a mensagem de Muhammad (saw) ou de Seydna Issa (saw). Além disso, nem todos os cristãos são cruzados. O bom frei era um franciscano, um humilde homem vivendo de esmolas e acolhendo doentes e miseráveis, nunca fez mal a ninguém até que um dia teve seu daimon despertado e por vontade de Allah (swt) se juntou aos Batini.
-Acalme-se Asadullah. Você está insultando nossos anfitriões. – Repreendeu-o Al-Arqam. – Peço desculpas pela insolência de meu jovem aprendiz, mas entendam que tal comportamento se deve à nossa experiência com os cruzados. Presenciamos uma verdadeira carnificina digna dos mais sanguinários vampiros empreendida por esses combatentes. Mas confesso que estou surpreso pela existência de Batini cristãos...
Asadullah ibn Talib |
-Sim, meu caro assamita, mas posso garantir que não há conflito de interesses na nossa casa. A luta por Jerusalém ou por Constantinopla não se trata de uma questão religiosa. A luta é contra a barbari dos cruzados, empreendida em grande parte por dedaleanos infiltrados em suas ordas. A luta é contra a Ordem da Razão e sua intolerância à magia, iniciando uma guerra sem sentido que já aniquilou muitos magos em Al-Andalus e agora ameaçam o oriente, principalmente em Jerusalém. – Explicou Jafar.
-Por que não nos sentamos e conversamos mais confortavelmente? – Convidou Zaynab.
-Sim, e peço desculpas por meu vergonhosos comportamento. – Asadullah já estava com o semblante mais sereno.
-Desculpas aceitas. O momento em que vivemos é de muita tensão, a Jihad é muito desgastante, que Allah (swt) nos dê força para suportar esta provação. – Afirmou Hasan enquanto estendia o cabo da cimitarra em sua direção.
Al-Alqam olha pro chão e movimenta a cabeça afirmativamente, aparentando desesperança.
-Obrigado senhor...
-Hasan, meu nome é Hasan. E este é Abdul, senhorita Zaynab e frei Francisco. Abdul?
-Sim tio.
-Preciso muito da sua ajuda.
-Claro tio.
-Por favor sente-se do outro lado da Kaaba, junto a porta. Se ouvir qualquer barulho estranho nos avise. Posso contar com você?
-Claro tio. – Afirmou enquanto se dirigia para o outro lado da Kaaba. Zaynab faz um gesto com a mão e um pequeno tapete com uma almofada surgem próximo a porta da Kaaba, onde Abdul supostamente “montará guarda”.
-Aceitam chá?
-Um copo de água por favor.
-Aqui está Jafar.
-Obrigado.
-E os senhores?
-Não, obrigado.
Todos se sentaram formando uma roda, Jafar olha para Al-Arqam, sorri e faz uma pequena reverência, passando a palavra para ele.
-Caros magos, inicialmente gostaria que soubessem que é uma grande honra não só pra mim, mas para todo nosso clã, o qual representamos, estarmos reunidos com vocês num local tão significativo para nós islâmicos. – Fez uma pequena pausa enquanto olhava para os magos, parecia estar emocionado.
-Ha algumas décadas eu e outros dois Silsila [6] nos perguntávamos qual o sentido da vida eterna. Para nós, filhos de Haqim, nossa missão original era eliminar aqueles cainitas que estavam se excedendo em sua crueldade, a tentação da gula é muito forte para nós vampiros. Contudo, debatíamos qual seria o critério para se estabelecer o limite para a crueldade tolerável e então nos voltamos para o estudo do sagrado Corão para encontrar a resposta e aos poucos percebemos que talvez estivéssemos sendo permissivos para com um mal que não poderia ser tolerado, dado que o sagrado Corão condena o assassinato de inocentes.
Frei Francisco olhava para ele com incredulidade.
-Pedimos licença para o “Velho da Montanha” [7] e fizemos um retiro do deserto e através da sabedoria de Rumi contida no Masnavi, encontramos a paz que a muito havíamos perdido. Foi a redescoberta da nossa identidade assamita, uma resignificação da vida eterna. – Hasan olhava com compaixão para o velho vampiro, si solidarizando com este.
-Com a anuência do “Mestre do Alamut”, decidimos iniciar uma nova casa onde poderíamos ter uma vida monástica, renunciando a toda forma de violência. Vagamos pelo deserto por alguns anos, inicialmente nos dirigindo para o sudoeste asiático, depois nos dirigimos para a costa leste do mediterrâneo e nos estabelecemos inicialmente no monte Hermon. Vivemos em paz por vários anos, sem a tentação do sangue vampírico, até que ocorreu um povoamento da região por dissidentes da Camarilla de Bagdá e também pó alguns vampiros do ocidente, provavelmente no rastro dos cruzados.
-O senhor acredita que estão estabelecendo um Sabá? – Questionou Jafar.
-Não temos certeza. Aparentemente se tratam de grupos isolados, mas é possível.
-Tentamos nos manter distantes, neutros, mas infelizmente percebemos que a paz para nós não existe e não poderíamos mais nos omitir...
-O que aconteceu que fez com que mudassem de idéia? – Interrompeu Hasan.
-Tivemos notícia de estranhos rituais, camelos foram encontrados decapitados, cabras enforcadas em suas próprias tripas ou queimadas. Alguns beduínos foram encontrados mortos e seus corpos dilacerados. Algumas crianças misteriosamente desapareceram.
-Que horror! – Indignou-se Zaynab.
-Investigamos e acreditamos que um clã de vampiros particularmente diabólicos está infestando a Ásia menor, os Baali.
-Isso é muito sério. – Preocupou-se Hasan.
-Sim, seríssimo. – Concordou frei Francisco.
-Mas isso ainda não é o pior. Acreditamos que vampiros infernalistas do oriente estão se articulando com do ocidente, colaborando em projetos demoníacos.
-Por que dizes isso?!
-Caro Hasan, vejam... – Disse isso enquanto abria um pergaminho com um mapa.
Mapa dos Assamitas (clique na imagem para vê-la ampliada) |
-Aqui está o monte Hermon, onde hoje funciona um posto de observação e nosso centro de treinamento.
-“Centro de treinamento”? – Estranhou frei Francisco.
-Sim. Fizemos contato com alguns povoados e estamos oferecemos treinamento, ajudando as aldeias a estruturarem um sistema de defesa, nunca se sabe quando os cruzados atacarão. Também estamos tentado organizar um “serviço de inteligência”.
-É assim que conseguem carniçais?
-Não frei Francisco, não temos carniçais entre os assamitas. Mas, sim, é uma forma de recrutarmos neófitos.
-A noroeste daqui, próximo a costa, está a gruta Jeita, encontramos uma passagem que dá acesso a um grande salão subterrâneo, é onde nos estabelecemos.
Os magos observavam o mapa e o ouviam atentamente.
-Fomos informados da presença de Baali próximo ao qalajat al-Husn [8] e enviamos um grupo para espioná-los e, se Possível, eliminá-los. Asadullah fazia parte deste grupo.
-Sim. – Respondeu Asadullah tomando a palavra. – Nosso grupo se dirigia para o norte, estávamos indo em segredo pela Horsh Arz el-Rab [9]. Por volta das 20:00h encontramos por entre as árvores uma cáfila de 12 camelos, perigosamente próximos da gruta Jeita. Nos chamou a atenção o fato de estarem viajando a noite. Por que não armaram acampamento e seguiram viajem pela manhã? Eram vários homens...
-Vampiros?
-Não Hasan, eram humanos, mouros, fortemente armados e bem treinados, exceto por um deles: um homem branco, olhos claros, alto, vestindo um manto negro, estava bem no meio da cáfila. Trazia acorrentado às suas costas uma pequena arca prateada. O líder da escolta era Umar ibn al-Khattab, um conhecido carniçal dos Tremere.
-Que estranho.
-Sim Zaynab, algo muito suspeito.
-Decidimos que tínhamos que descobrir o que tinha dentro da arca.
-Como vocês procederam Asadullah?
-Decidimos que seqüestrar este homem seria a forma mais simples para se descobrir o que tinha na arca.
-Como?
-Conhecíamos bem a região, era noite, derrubamos uma árvore, obstruindo a trilha principal, que passava pela encosta de uma montanha, ao lado de um barranco de aproximadamente 3m de altura, em um local de vegetação particularmente densa. Quando se aproximaram do local da emboscada, imitamos o uivo de lobos, vindo de várias direções e atacamos o último camelo da cáfila. Os camelos se desesperaram e saíram correndo, conseguimos desorientá-los e vários caíram pelo barranco. No meio desta confusão eu pulei na garupa do camelo que conduzia nosso alvo. Eu o peguei de surpresa, dei-lhe uma gravata, caímos no chão, ele tentou reagir, mas o venci. Ele desfaleceu e o carregamos até onde estavam escondidos nossos cavalos e fugimos sob o manto da escuridão.
-Hum! – Exclamou Zaynab impressionada.
-Por segurança não voltamos para a gruta Jeita, não podíamos ter certeza se estávamos sendo seguidos. Fomos por trilhas alternativas conhecidas apenas por moradores da região e nos dividimos. Um grupo rumou para o sul, em direção ao lago Qaraaoun. Deram uma volta pelas montanhas e seguiram para o vilarejo Barouk, onde se esconderam até a noite seguinte. Enviamos um de nossos acólitos, um hábil cavaleiro, para a cidade de Batroun, para contatar um conhecido barqueiro. Eu e outros três homens levamos nosso prisioneiro até o litoral sul dessa cidade, onde embarcamos. Tentamos interrogá-lo mas ele se recusava a falar. O revistamos e encontramos esta imagem tatuada em seu ombro esquerdo. – Asadullah retira do bolso uma folha de papel onde estava desenhado à mão livre quatro caveiras dispostas em cruz, sendo a do meio com uma coroa.
-O brasão do clã Capadócios!
-Sim, Hasan.
-E a caixa? – Perguntou Zaynab ansiosa.
-Ele ainda estava acorrentado a caixa e não estava com a chave dos cadeados ou com a chave da arca. Na noite seguinte desembarcamos no local combinado, próximo a Saadiyat, o grupo que se escondeu em Barouk estava nos aguardando e então nos dirigimos para o monte Hermon.
-E os outros soldados que faziam a escolta?
-Estavam em camelos e nós à cavalo, nem sinal deles.
-Então, quem era este homem?
-Provavelmente um carniçal, exalava o cheiro de sangue vampírico. Não falava árabe fluente. Ele negou sequer ter conhecimento da existência de vampiros, um grande mentiroso.
-Acreditamos que a caravana vinha do Deir Mar Musa AL-Habashi [10], provável morada dos Tremere na região, e seguia para o porto da cidade de Trípoli, provavelmente rumava para Al-Andalus. – Retomou a palavra Al-Arqam.
-E a arca? O que tinha dentro da arca?
-Não foi fácil quebrar os cadeados e abrir a arca, Zaynab. – Asadullah tira de uma bolsa presa ao seu cinto um embrulho de pano preto. Dentro deste um estojo de prata, de aproximadamente 40x30x10cm. Não possuía nenhuma inscrição. Coloca o estojo sobre o tapete e cuidadosamente o abre. Neste momento Zaynab e frei Francisco estremecem. Hasan olha para o artefato com desprezo.
-Por Allah (swt)! A energia demoníaca em seu interior é terrível. Este estojo deve ter alguma forma de proteção mágica para não ser detectado.
-Eu estava sentindo uma força malévola na Kaaba desde que chegaram. Mas só agora pude identificar origem. – Frei Francisco se benzia.
Dentro da caixa, um livro de capa negra, nenhuma inscrição na capa. Parecia ser um livro muito antigo, suas páginas eram de couro de carneiro. Al-Arqam retira o livro da caixa e dentro do livro, entre as primeiras páginas, um pequeno pedaço de papel.
-Que livro demoníaco é esse Jafar?
-É um livro de “Taumaturgia Negra”, Zaynab.
-Por Allah (swt)! E esse papel? – Disse Zaynab enquanto estendia a mão na direção de Al-Arqam.
-Acreditamos que seja algum tipo de mensagem.
Jafar retira uma lupa de seu bolso e a entrega para Zaynab.
-Obrigado Jafar. Isso é interessante. – Disse Zaynab enquanto examinava a mensagem codificada. – Já conseguiram decifrá-la?
-Não.
-Parece possuir um padrão: um par de três pontos verticais, alguns maiores, outros menores... Talvez cada combinação represente um caracter do alfabeto latino, grego ou árabe, ou...
-Acha que pode decifrá-lo Zaynab?
-Não sei. Mas posso tentar, Jafar.
-Ótimo.
-Talvez devêssemos interrogar o tal carniçal para...
-Infelizmente isso não será possível Hasan.
-Por que não Al-Arqam?
-Por que o infeliz se matou. Morreu afogado numa bacia d’água. Nunca vi ninguém tão determinado a acabar com a própria vida.
-O sangue vampírico tem esse poder. Provavelmente foi instruído por seu mestre a fazer isso caso fosse eventualmente capturado. – Completou Jafar.
-Ele não trazia consigo mais algum documento que pudéssemos identificá-lo?
-Não, nada.
-Um Tremere infernalista do oriente se articulando com Capadócius de Al-Andalus. O que estariam planejando? – Indagou Zaynab.
-Quem seria o destinatário de tão odioso manual? – Perguntou-se Hasan.
-Acho que precisamos trabalhar com o que temos. Frei Francisco, acha que poderia tentar descobrir mais sobre o clã Capadócios em Al-Andalus? Em quais cidades atuam, se têm algum relacionamento com o oriente e principalmente se algum deles foi seduzido pelo infernalismo?
-Posso tentar Jafar. Mantenho contato com um grande inquisidor em Roma, posso perguntar sobre a atividade vampiresca na Europa. Também posso tentar rastrear denúncias de violação de túmulos e verificar se são compatíveis com o modus operandi dos Capadócius.
-Ótimo... Hasan, poderia ir até o porto de Trípole e tentar descobrir sobre quais são as rotas mais comuns e quais navios normalmente rumam para Al-Andalus.
-Será providenciado.
-Vocês assamitas poderiam se aprofundar na investigação sobre estes Tremere de Deir Mar Musa AL-Habashi e tentar descobrir se está havendo atividade demoníaca neste local.
-Faremos isso. O mosteiro será vigiado 24h por dia. Se detectarmos qualquer atividade infernalista, nós os avisaremos.
-Certo, por favor nos mantenham informados também sobre os Baali. Eu irei a Bagdá e farei contato com a Camarilla de Bagdá, vamos ver o que eles têm a nos dizer sobre vampiros infernalistas na Ásia Menor.
-O que vocês pretendem fazer com “O Livro”? – Perguntou Zaynab.
-É uma boa questão. Ainda estamos discutindo isso.
-Al-Arqam, “O Livro” está seguro?
-Sim, Jafar. Está trancado dentro de um cofre, vigiado 24h por dia.
-Os Tremere podem usar sua mágica de sangue para tentar localizar “O Livro”, se encontrem seu esconderijo, correrão grande perigo.
-É um risco que corremos. – Conformou-se Al-Arqam.
-Não subestime a magia dos Tremere, ainda mais “Tremere Infernalistas”.
-O que sugeres?
-Este livro é um grande perigo para todos. Não deve em hipótese alguma cair em mãos erradas. Contudo, não possui nenhuma serventia para vocês. “Ele” deve ficar magicamente protegido para não ser detectado. Deixe-o conosco. Nós, os Batini, podemos protegê-lo melhor do que vocês e tens a minha palavra Al-Arqam que quando decidirem o que fazer com ele eu o devolverei à vocês.
-Que assim seja. – Sentenciou Al-Arqam.
Jafar retorna o livro para dentro de seu estojo de prata e o tranca novamente, faz um gesto com os braços e o estojo desaparece.
-Pronto. O livro já se encontra no monte Qaf, em segurança. Faço votos para que vocês decidam por sua destruição o mais rapidamente possível. Este mal precisa ser definitivamente eliminado. Mais alguma coisa a acrescentar? Al-Arqam?
-Acho que isso é tudo.
Os magos e Asadullah movimentam a cabeça negativamente.
-Ótimo. Então dou por encerrado nossa reunião e gostaria de agradecer a todos por terem comparecido e antes de partirmos acho que está na hora do Salah [11]. Frei Francisco, por favor, sinta-se livre para ir.
-Se não se importam gostaria de partir. Tenho alguns assuntos pendentes no mosteiro que necessitam de minha atenção.
Se despedem respeitosamente e então frei Francisco segura o crucifixo em seu pescoço, profere uma oração em latim e desaparece.
-Abdul?
-Sim, tio.
-Por favor venha cá, junte-se a nós para a Salah. Obrigado por ter ficado vigiando, zelando por nossa segurança.
Dessa forma se reúnem e juntos cumprem suas obrigações religiosas: a oração do pôr-do-sol para os magos (Maghrib) e a primeira da noite para os assamitas (Fajr). Depois se despedem e Jafar se retira da Kaaba conduzindo os assamitas pelo portal que outrora criara. Hasan segura seu medalhão e recita algumas frases do Corão. Seus olhos novamente brilham. Ele segura no braço de Abdul e ambos são teletransportados para fora da Kaaba, para o lado interno da Al Masjid Al-Haram [12], por entre suas colunas.
-Bismillah. – Exclamou Abdul maravilhado com tudo que havia presenciado.
Hasan sorri, mas olha para Abdul com um olhar compassivo, quase piedoso, como o olhar de Abraão para com Ishmael quando Allah (swt) mandou sacrificá-lo. Abdul sem entender esta reação de Hasan se assusta.
-Tio Hasan, o que se passa? Por que me olhas dessa forma?
-Nada, nada querido sobrinho. – Falou olhando para o chão, sem encarar Abdul. – Vamos iniciar a Tawaf [13]?
-Claro tio, vamos! – Hasan coloca sua mão no ombro de Abdul e caminham para próximo da Kaaba e iniciam as circumambulações [14]. Hasan não consegue esconder seu descontentamento, como se estivesse muito insatisfeito. Abdul quase em êxtase não se atenta para a tristeza de seu tio.
Ser Ahl-i-Batin não é fácil. Exige dedicação, uma vida de renúncias, disciplina e principalmente lealdade para com os Batini. Ao longo de minha vida como Mujahid [15] já fui imbuído de várias tarefas complicadas, de várias missões que discordava, que acha sem sentido. Mas como mago era a primeira vez que recebia uma missão que colocava em conflito “O Mago” com “O ser Humano” que sou. Abdullah Ansari disse uma vez que há duas Kaabas, uma construída na terra e outra no coração. A da terra é aquela que os peregrinos freqüentam, a outra é o local secreto, que só os buscadores da “Verdade” descobrem. Essa Kaaba ninguém poderá tirar de Abdul, esse é meu único consolo.
Bom, preciso ser objetivo. Infelizmente Jafar está certo. É muito perigoso para os Batini, para nossos aliados assamitas e para o próprio Abdul permanecer consciente desta “Noite na Kaaba”. Abdul está tão concentrado na Tawaf que será muito fácil entrar em sua mente e apagar todos os eventos referentes a esta tão singular reunião. Sobrará apenas a recordação de suas emoções, a alegria, a felicidade, porém inespecíficos...
Hasan segura seu medalhão com a mão direita e mantém sua mão esquerda no ombro de Abdul. Abaixa a cabeça para que as pessoas não vejam seus olhos brilhando... E está feito. Completada a Tawaf os dois se afastam da Kaaba e se sentam para descansar.
-Tio Hasan, que estranho... Não me lembro sobre o que estávamos conversando antes do senhor propor iniciarmos a Tawaf.
-Deve ser a emoção. Você havia me perguntado o que é o sufismo.
-Acho, acho que sim... Agora me lembro.
-Então, o sufismo é um caminho místico, ou seja, previlegia a experiência direta de Allah (swt)...
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[1] Pequeno chapéu de feltro ou pano, muito usado entre os homens muçumanos. Para ver uma foto clique aqui.
[2] Sallallahu 'alaihi wa sallam. Usualmente quando um muçulmano se refere a Muhammad, Jesus ou qualquer profeta, imediatamente após o nome diz ou escreve "que a paz e bênção de Allah estejam sobre ele", ou simplesmente a sigla s.a.w.
[3] Subhanahu wa ta'ala: "glorioso e exaltado é Ele".
[4] Um dos "99 atributos de Allah" que significa "O Magnânimo", “O que Expande”.
[5] Senhor Jesus, considerado um grande profeta pelo islã, o profeta da interioridade, da santidade.
[6] São os anciões do clã assamita, “Os Guardiões do Sangue”. Muito respeitados. São como sacerdotes e instrutores dos Fida’I, neófitos recém abraçados.
[7] “O mestre do Alamut”, também conhecido como o “Velho da Montanha”, é o líder supremo do clã Assamita.
[8] Em francês Krak des Chevaliers, A expressão "Krak" ou "Karak" designa um tipo de fortificação erguida no século XII e no século XIII pelos Cruzados, nas regiões das atuais Síria e Palestina, para assegurar a defesa dos chamados "Reinos Latinos do Oriente". Dentre esses, um dos principais era o Krak dos Cavaleiros, que defendia o limite Nordeste do Condado de Trípoli.
[9] Floresta de cedros-do-líbano, também conhecida como “Cedros de Deus”. Hoje são remanescentes de uma imensa floresta que cobriam as cercanias do monte Líbano. Sua madeira foi explorada pelos assírios, babilônios e persas, assim como pelos fenícios. Era empregada pelos antigos egípcios para construir barcos e foi utilizada por Salomão para construir o primeiro Templo de Jerusalém.
[10] Literalmente o monastério de são Moisés de Abissínia, um príncipe etíope que abriu mão de sua coroa e optou por uma vida monástica. Viveu como eremita em um vale próximo deste monastério. Foi morto, martirizado por soldados Bizantinos.
[11] Refere-se às cinco orações diárias que cada muçulmano deve realizar voltado para Meca.
[12] Mesquita sagrada construida ao redor da Kaaba.
[13] Ritual no qual o peregrino faz sete circumambulações em torno da Kaaba.
[14] Ato de circular em volta de qualquer objeto considerado sagrado.
[15] Guerreiro da Jihad.
11 comentários:
Doutor Hugo.
Demonstraste complexidade de argumento, habilidade em delinear várias vozes e sofisticação em elaborar uma trama de vampiros, magos e demoônios.
Estou impressionado com tua progressão na literatura. O prelúdio de Abdul já é quase uma crônica em si mesma, com capacidade de elaboração e nuances ricas e profundas.
Obrigado por iniciar 2011 com esse momento de imaginação, política, decisões morais com repercussões em várias camadas de significados.
Particurlamente o dilema de Hasan em proteger Abdul e ao mesmo lentamente perceber que ele, Abdul, inexoravelmente caminha para o despertar e o sacrifício se tornam estimulantes no processo de amadurecimento, no dilema entre afeto do tio e a necessidade de não impedir o crescimento do sobrinho como adulto.
Apagar as memórios de Abdul, mas não as emoções que vieram dessa experiência exibem o dilema do próprio Hasan, que quer protger o sobrinho, mas ao mesmo tempo sabe que o sofrimento do amadurecimento é necessário.
Muito bom.
Grande Diego,
Obrigado por seu comentário...
Acho bastante estimulante a relação Hasan X Abdul. Em grande parte estou me baseando em Claudio Risé... O que significa ser Pai. Vc como ninguém entendeu a questão.
Obrigado pela mestragem...
Hugo Marcelo
Fiquei pensando no batizado cristão como esse dilema. Educar no cristianismo é duro, mas ao mesmo tempo necessário
Interessante analogia...
Nossa Diego, já ia me esquecendo... 2 pontos!! Hehehehe
Qd eu crescer, eu quero escrever que nem o Hugo e comentar que nem o Diego.
Na verdade dr., foram três partes do prelúdio, então são seis pontos. (De fato, você poderia ter dividido essa última em duas partes, mas fica a dica para as próximas postagens!).
Abs.
Caro Diego,
Vc, na qualidade de MESTRE, é absolutamente livre pra me gratificar com 4 pontos por esta "postagem dupla".
Agradecido,
Hugo Marcelo
Pensei nisso Hugão. Acho que vai acabar sendo assim mesmo.
Abs.
Mais uma vez, obrigado Diego!!
VIVA!!!
Hugo Marcelo
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