24 de outubro de 2011

Cap. 4 - As chamas de Hades


Um dia inteiro já havia passado. Ninguém veio ao meu socorro e o som de chacais se aproximando tornava a minha situação cada vez mais crítica. Morrer não me assustava verdadeiramente, mas sim a fúria que receberia de Hades por não conseguir sequer começar a cumprir seus desígnios.

Lembrei-me de algo. A sala de tortura. Sim, estive lá. Onde está Parmênides? A insistente raiva passada tentou se manifestar novamente e senti que estava prestes a me aprisionar em definitivo no círculo da Loucura. Entretanto, algo novo surgiu. Algo que, a princípio, não fazia sentido. Lembrei como havia chegado naquela savana.


(Senti o primeiro impacto do abutre. Seu bico tentou tirar um pedaço de pele da minha cabeça ao mesmo tempo em que quis descobrir se ainda estava vivo. Gritei para que fosse embora. Ele foi. Por enquanto.)

Agora estamos na sala de tortura. O glutão maldito jaz no chão com o pescoço degolado. Ainda preso nas engrenagens do potro¹, escuto pessoas conversando entre si. Não são pessoas comuns. Vestem roupas estranhas. Com a vista turva e a sensação de calor/energia infernal queimando minhas entranhas só consegui discernir que um deles limpava uma adaga suja de sangue, provavelmente do meu torturador. Foi então que escutei:

- Vamos tirá-lo daqui. Esse desperto ainda tem um caminho longo pela frente.

Belo engano o meu. Por instantes, pensei que eles estivessem ali para me ajudar. No entanto, quando acordei, eis a minha situação. Pendurado, com sede e com fome, gravemente ferido e prestes a ser condenado por ninguém mais que o próprio Hades. Por quanto tempo estive ali? Não faço ideia. Sei que passei de um maluco para outro e nenhuma explicação me foi dada. Somente um sujeito me dizendo que, se tivesse mesmo conhecido o Senhor do Inferno, saberia como sair dali.

Dessa vez, não é uma bicada que recebo; um abutre pousa perto de mim e parece estar sondando aquele fedor putrefato de sangue coagulado e órgãos e músculos começando a morrer. De repente, o funesto animal grasna alto para os outros e, um a um, eles vão se aproximando.

Um deles salta em cima de mim. Como não tenho forças para me mexer, ele passa a bicar meus olhos e meu nariz. Sinto o sangue escorrer pela boca enquanto outro abutre passa a bicar minhas mãos. Lembro de Parmênides. Mas dessa vez não tenho raiva , nem desejo vingança. Sei que posso e devo fazê-lo queimar no inferno, assim como eu mesmo queimei.

Quando estava prestes a desvanecer, meu espírito disse algo para minha mente. Algo que não pode ser codificado em palavras, mas que me explicou que aquela ira e loucura poderiam ser canalizadas, e o calor infernal dentro de mim não estava ali só de passagem.

Comecei a me esquentar. Primeiro foram os olhos, que se tornaram brasas e expulsaram o primeiro abutre. Depois minha cabeça e o restante do corpo ficaram em chamas e queimaram as cordas que me prendiam em pêndulo. Caí no chão e, por um momento quis me regozijar. Mas como me alegrar se ainda estava ferido e impossibilitado de andar. Percebi então que, além da corda, as estacas mágicas também haviam queimado e a energia infernal conseguia me levantar.

(Essa energia me envolvia de tal maneira que, mas sem tocar nos abutres, todos os que estavam perto de mim naquele local haviam morrido.)

O poder de retornar dos mortos havia se manifestado em mim. Cada passo adiante no deserto me libertaria e deveria começar a caminhada.

Só olhei para trás um vez. Quando escutei os chacais novamente, eles se banqueteavam, não comigo, como dizia seu plano inicial, mas de abutres mortos.

Minha temporada no inferno estava apenas começando.


Nota:
¹ potro: mesa com orifícios laterais onde se deitava a vítima cujos membros, (partes mais resistentes das pernas e braços, como panturrilha e antebraço) eram presos por cordas através dos orifícios. Giradas como uma manivela, as cordas iam progressivamente pressionando os membros e produzindo um efeito como um torniquete.
 
    

6 comentários:

Hugo Marcelo disse...

Grande Laredo,

Um texto forte e envolente. Eu adorei. Parabens!

Um grande abraço,

Hugo Marcelo

Camila Numa disse...

Eu já disse que não gosto do Hades?
Não?
Então tenho dito!
O bicho do capeta!
E olha que a Freia não é tão boazinha comigo...

Eu n sei se vou continuar lendo.
Me dá medo.
¬¬

Hugo Marcelo disse...

É verdade Camila,

Hades é "faca na caveira"!!!!

HEhehehe

Hugo Marcelo

dklautau disse...

Essa descrição do inferno é algo impressionante mesmo. Começo a entender porque Heráclito achou que o inferno de Dante era um lugar familiar.

As descrições da puterfação (entropia) e do domínio do mundo espiritual (espírito) foram muito bacanas.

Fabi Dias disse...

Ei Laredão, admiro o Heráclito pela sua ousadia!!! Aprendi muito com suas "jogadas"!
Abraços

Filipe Larêdo disse...

O prazer é meu, Fabi. Aprendi muito jogando com vcs e, certamente, esse é uma das melhores crônicas que já joguei.